quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Entrevista imaginária a El-Rei D. João IV


UA MAJESTADE el-Rei Dom João IV, vigésimo primeiro Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar, primeiro soberano da quarta dinastia, a de Bragança, falecido em 1656, isto é, há 355 anos, depois de alguns convites que lhe fiz, acabou por aceder materializar-se, concedendo-me esta falsa entrevista.
Chegou para o encontro com o porte exigido a um monarca, cumprimentou com um ligeiro movimento da cabeça, e sentou-se. No semblante, um bigode tremelique e aquela sobrancelha arrebitada eram sinais de uma incontida expectativa. E começámos:


P - Dizem os cronistas que Vossa Majestade, nos idos de 1640, aquando da restauração da independência, teve alguma relutância em assumir-se como mentor do movimento dos conspiradores. Qual a razão daquela prudência, quiçá hesitação?
R – Na altura, ainda jovem e bem instalado, não era muito voluntarioso, e se não fosse a insistência de dona Luíza, minha esposa, não me teria aventurado. As mulheres acabam sempre por marcar a vida dos homens, para o melhor e para o pior. Mas numa situação daquelas caímos sempre naquela angústia que assalta quem não possui o dom de predizer o futuro, isto é, se aquilo em que nos vamos empenhar irá ser melhor ou pior para o país. Olhe, parafraseando o que há dias disse o vosso contemporâneo Otelo, se soubesse o que sei hoje, provavelmente, também não teria dado aquele passo.
P - Concorda então com a posição do coronel Otelo?
R – Não, não concordo. Esse homem quer excluir-se de ter sido protagonista e ter tido responsabilidades num projecto que, entre muitos achaques e solavancos, foi corrompido e está a correr mal. Em resumo, quer reescrever a História. Não podendo fugir, quer ver-se desligado do acontecimento. Essa é a pior cobardia que conheço. Eu, enquanto por cá andei, arrisquei, fiz o que pude, nunca enjeitei a causa da restauração, muito embora agora, tanto tempo decorrido, conclua que os seus objectivos a longo prazo não tenham sido atingidos. 
P – Voltemos então a 1640. Ao passo que uma parte da aristocracia se sentia confortada com o domínio dos Filipes, havia outra que queria evitar a definitiva integração de Portugal no reino de Espanha. Quanto ao povo, também esgotado e cheio de exaltação patriótica, não se eximiu a corresponder aos sacrifícios que lhe foram exigidos. Tomou o partido dos segundos porquê?
R – Fui mais empurrado que convencido por esse lote de aristocratas a quem interessava voltar e gozar da independência, pois não é muito rentável partilhar teres e haveres com o vizinho do lado, além de que não há nada como cada um ter o seu quintalzinho para governar. E nessas alturas apelar ao patriotismo dá muito jeito, pois o povo não percebe que tanto é explorado de uma forma como de outra, mas gosta que lhe digam, em certos momentos, que é protagonista, e que está nas suas mãos a salvação e os destinos do país.
P – Então, dessa sua anuência em ostentar a coroa e iniciar uma nova dinastia, e à distância de 355 anos, que saldo podemos concluir?
R – Apenas que voltámos a adiar a nossa decadência, e pouco mais. Em 1640 eu não era um Mestre de Avis, como o de 1383, que se pôs à cabeça de um povo que era a força motriz da revolução, a tal arraia-miúda de que falava o Fernão Lopes. Eu era apenas a cabeça para receber a coroa, caso os quarenta insurrectos fossem bem sucedidos.
P – E foram! Não há dúvidas que tiveram sucesso, mas quanto ao propósito, será que era bom?
R – Só quando se materializa em progresso. Se, pelo contrário, cairmos numa espiral de malogros, o mais certo é que estejamos a falar de um estado falhado. A responsabilidade disso cabe sempre aos governantes, muito embora em democracia, como é agora o caso, o povo eleitor também tenha que partilhar essa responsabilidade, sobretudo quando acredita em falsas promessas, e mesmo assim não se emenda nas escolhas, e até reincida.
P – Então a restauração não passou de uma ilusão…
R – Ganhámos a independência em termos militares, porque o nosso vizinho não reagiu de imediato, pois estava no meio de uma guerra com os franceses, e a nossa conspiração foi tão artesanal que passou despercebida. Ganhámos a independência política, mas de lá para cá a verdadeira soberania portuguesa foi-se enfraquecendo e desbaratando por outros caminhos.  
P – Como assim?
R – Fomos descobridores, colonizadores, mas também nos deixámos colonizar.
P – Dê-me exemplos…
R – Tornámo-nos um protectorado dos ingleses com o tratado de Meetwen, desenhámos o mapa cor-de-rosa e responderam-nos com o ultimato inglês, acabámos por ceder as Lages, sob a ameaça de ocupação por parte dos EUA e Reino Unido durante a Segunda Guerra Mundial, e aceitámos a brutal redução da agricultura e das pescas, após a adesão à União Europeia, quase transformando o país num mero mercado consumidor de produtos importados. Agora ostentamos a segunda maior fuga de cérebros de toda a OCDE, a segunda maior vaga de emigração e a pior dívida pública dos últimos 160 anos. Temos a maior dívida externa dos últimos 120 anos, coisa que em termos brutos é quase oito vezes maior do que as nossas exportações, com a austeridade e a recessão sempre a rondar-nos a porta. E já vamos na terceira intervenção do FMI. O resultado final é que o povo vai empobrecendo cada dia que passa, ao passo que o Estado exibe uma ostentação faraónica…
P – Vossa Majestade está bem informado!
R – Pudera! Ser observador não paga imposto. Por isso sou tão pessimista e descrente do que se ganhou com a restauração da independência, dado estarmos hoje no ponto em que estamos, que nem com os amigos se pode contar…
P – Quais amigos?
R - Falar de países amigos é pura hipocrisia. Ao longo da História, nunca se disse maior bravata. Os povos e os países sempre escolheram os seus “amigos”, em função dos seus interesses. A amizade genuína, mesmo entre indivíduos, é quase um produto residual, senão mesmo raro. Assim sendo, os portugueses não se devem escandalizar quando agora aparecem alguns países da União Europeia a recusarem-se contribuir para o resgate da dívida soberana, apontando-nos a porta de saída do euro, ao mesmo tempo que nos apaparicam, para que continuemos a consumir o que eles para cá exportam. Portanto, não se admirem que já haja 39% de espanhóis que concordam com a unidade ibérica, ao passo que 46% de portugueses vão pelo mesmo caminho, pois ambos os países partilham a mesma jangada e a união faz a força…
P – Vossa Majestade já está a fazer futurologia, a qual não elimina a continuada política de traição, perda de energia e definhamento, que levou Portugal a perder a pulsação…
R - Miguéis de Vasconcelos há muitos e para todos os gostos, eles andam por aí. Mas o pior são os traficantes da política, isto é, aqueles cuja acção não coincide com o que dizem, nem com o que pensam, mais o facto de os portugueses continuarem a ter memória curta, serem cada vez mais ingénuos e campeões dos brandos costumes…
P – Que solução sugere?
R – Tal como eu não posso ressuscitar, também vocês não podem recuar até 1974 ou 1640, e de lá ensaiarem outras soluções, reescrevendo a História. Mas podem, a partir de amanhã, mudar de rumo e fazer escolhas acertadas. Se Portugal, com engenho e arte, foi tantas vezes pioneiro e inovador, porque não há-de voltar a sê-lo?


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