sábado, 3 de agosto de 2013

"Portugal nunca esteve tão dependente como agora em toda a sua História" entrevista a D. Manuel Clemente

Rosa Ramos, ionline 20-07-2013

O novo Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, diz que o país atravessa uma "situação inédita em quase um milénio de História"
Ainda agora começou e já parece cansado. Não é para menos: desde que tomou posse, D. Manuel Clemente não parou e tem tido a agenda sempre cheia. Por opção. A seguir à missa da entrada solene, o novo Patriarca de Lisboa fez questão de cumprimentar todos os fiéis, um por um, nos Jerónimos. Não recusou nenhuma entrevista e já conseguiu reunir com os responsáveis de todos os departamentos da diocese. Avisou-os de que a partir de agora vai haver encontros de dois em dois meses no Patriarcado. D. Manuel Clemente quer renovar as comunidades cristãs de Lisboa e não descarta a possibilidade de vir a fundir paróquias. Sobre a actual situação do país - que classifica de "inédita" -, apela ao entendimento urgente das forças políticas. E também à mobilização de católicos e não católicos. "Os portugueses têm, em relação à política, um distanciamento exagerado", diz.
Sei que tem estado a responder a todos os pedidos de entrevistas. 
Sim. Quando fui nomeado, em Maio, começaram a chegar muitas solicitações de jornalistas. Só que na altura estava no final do ano pastoral e cheio de trabalho. Então disse ao meu secretário lá no Porto, o padre Américo, que juntasse toda a comunicação social que estivesse interessada a seguir à missa de Pentecostes. Assim podiam fazer todas as perguntas que quisessem e de uma só vez. Enchemos um auditório. Depois disso decidi só voltar a receber jornalistas a seguir à tomada de posse. Tinha uma diocese para governar.
Mas aceitou todos os pedidos?
Todos os que me chegaram, sim.
É importante estar com jornalistas?
Nós hoje não podemos viver de outra maneira. Temos de viver com a comunicação social. Antigamente tínhamos uma certa ideia de que os jornais eram um instrumento a que deitávamos mão de vez em quando. Mas hoje já não é assim. Pode-se gostar mais ou menos, mas o mundo é assim e é uma maneira de chegar às pessoas e de partilhar a mensagem que temos para transmitir. As pessoas fazem perguntas e nós temos que responder. É tão simples quanto isto.
Mas o seu antecessor raramente dava entrevistas.
As pessoas são diferentes. E também é preciso ver que eu lido com a comunicação social há muito tempo. Tive um programa semanal na rádio durante 12 anos e outro na televisão durante 15. Cada um tem a vida que tem.
É uma questão de personalidade?
De personalidade e de percurso. Vamo-nos habituando a viver assim. Mas se me pergunta se eu não aspiro pelo dia em que já não tenha de dar entrevistas, isso aspiro. Mas pelos vistos não é para já.
A voz eclesiástica mais ouvida no país é a do Patriarca de Lisboa, por razões históricas e geográficas. A responsabilidade agora é maior?
Há um peso diferente, porque se está na capital e há muitas coisas, do Estado ou da própria sociedade, que acontecem aqui. Por isso, serei talvez o interlocutor mais à mão. Mas eu não posso falar pela Igreja. Nós, bispos, temos tentado explicar isto: a Igreja não tem uma organização nacional, mas sim internacional, à volta do bispo de Roma. Cada diocese tem a sua autonomia. Há uma Conferência Episcopal, que reúne todos os bispos, mas que também não é um órgão de cúpula. Não se sobrepõe à autonomia das dioceses. É só um órgão de cooperação entre as dioceses.
Como avalia a força da Igreja em Portugal, nos últimos anos, em relação a decisões políticas que foram tomadas como despenalizar o aborto ou permitir o casamento gay? Há países em que a mobilização católica é muito maior. 
Estou na Conferência Episcopal desde 1999 e desde essa altura já nos pronunciámos e fizemos documentos sobre tudo e mais alguma coisa, desde essas questões fracturantes a outros assuntos. Portanto, não é por falta de pronunciamentos episcopais. O que há em outros países e que se calhar não existe em Portugal é uma opinião pública católica, e até interconfessional e humanitária, sensível a estes temas e que se pronuncie e manifeste. Em Portugal, e temos que reconhecer isso, esses movimentos não são tão expressivos. Penso que isso também terá a ver com a índole portuguesa: nós levamos a vida que levamos, com as convicções que temos, mas não vamos para a rua - a não ser em momentos muito críticos - para expressar colectivamente os nossos sentimento. Isso não está na nossa forma de ser.
Ultimamente tem havido várias manifestações. 
Sim, mas não são um facto muito estrutural da sociedade portuguesa. O português prefere andar nos seus círculos habituais e manifestar as suas opiniões com os seus grupos de amigos. E tem, em relação à política, um distanciamento exagerado, ligando-lhe mais ou menos ou não ligando mesmo nada. E não se informando. Mesmo assim, a sociedade portuguesa é uma sociedade com a qual é preciso ter cuidado: não se manifesta e, por isso, não é tão facilmente avaliável. Mas tem convicções e resiste, ainda que passivamente. Não é tão sensível assim a golpes de mão, manobras de bastidores ou a grupos que consigam fazer passar uma lei sem que ela tenha sido debatida ou percebida pelo conjunto da população. Só que depois não se liga e às vezes é tarde. A sociedade portuguesa sofre disto, quer no que diz respeito à religião, quer no que se refere à política. É uma sociedade muito à retranca.
E os cristãos, afirmam-se pouco? 
Sim. E é fundamental que o façam mais. O problema é que há um conjunto de preconceitos, até de tipo cultural, que os inibe. E também porque quando se afirmam surgem debates, são confrontados com perguntas para as quais não estão preparados para responder. São precisas comunidades, na Igreja, onde os cristãos ganhem o hábito de se congregarem e de aprofundarem os temas. Nós, como pastores, podemos estimular esse trabalho, mas não nos podemos substituir ao papel de profetas que é exigido aos cristãos, pela sua condição baptismal. Por isso, quando me perguntava há pouco qual é o impacto, maior ou menor, que a Igreja tem face aos problemas emergentes da sociedade portuguesa, eu respondo-lhe: o que falta não são documentos sobre os temas fracturantes. O que falta é gente, grupos de cristãos que os assimilem, que peguem neles e os concretizem e aumentem.
Faz falta uma revolução de cristãos?
Exactamente. Se quiser, é isso é que falta. Mas isto está ligado à tal retranca tradicional do português em se exprimir publicamente. O português reage negativamente. Não pela presença, mas pela ausência. "Está bem, isso é lá com eles, eu cá me entendo". Isto é muito sintomático e tem de ser ultrapassado.
Na homilia da missa da sua entrada solene, usou várias vezes a palavra "renovação". Sente que renovar é o seu carisma, agora que é Patriarca? 
Sempre senti, na verdade, e há muito tempo. Em Lisboa, no Porto e agora outra vez em Lisboa. Eu hoje, aos 65 anos, estou tão apaixonado como quando tinha 15 pela novidade que encontro no Evangelho. Renovação tem a ver com isso: retomar a novidade. A renovação que eu proponho é que nos renovemos nesta novidade da proposta de Cristo - tão fresca hoje como há dois mil anos. E que as comunidades cristãs, as famílias e os empresários o façam.
Um dos desafios complexos que tem pela frente tem a ver com a falta de Clero na diocese de Lisboa.
Normalmente só se fala na crise de vocações sacerdotais, mas a maior crise de vocações na Igreja, neste momento, é a feminina. A crise de vocações tem a ver sobretudo com dois factores. Por um lado, a crise demográfica da sociedade portuguesa. Por outro lado, coloca-se a questão da renovação de que falava há pouco: se as pessoas não têm, nas comunidades, uma experiência cristã que o seja verdadeiramente e que seja capaz de entusiasmar, logicamente que não quererão jogar a sua vida por aí. É nestes dois campos que temos que trabalhar. O problema demográfico é, obviamente, mais complicado. Há tempos li uma publicação europeia que dava como certo que em meados deste século a maioria da população já não será de origem europeia.
Havendo poucos padres na diocese de Lisboa terá de se partir, por exemplo, para a fusão de paróquias?
Eu não poria muita ênfase na questão da administração. Temos que ver caso a caso. Nós podemos ter divisões paroquiais que são mais administrativas do que propriamente sociais e humanas. E outras que são muito tradicionais, muito antigas e muito vinculativas. Temos que tratar com cuidado essas redes culturais. Pode acontecer eu ter alguma resistência em acabar com uma paróquia pequena e não ter tanta resistência em mudar uma divisão maior, mas que seja mais administrativa. Temos que ver caso a caso. Quando se trata de comunidades e há uma participação de valores locais muito fortes, tem que se ir com cuidado.
Mas a divisão administrativa da diocese é um assunto que vai ser analisado?
Com certeza. Aliás, está previsto nos organismos colegiais da diocese que todas essas coisas sejam analisadas. E o bispo não pode fazer alterações desse género sem ouvir o conselho dos presbíteros e outros órgãos de aprofundamento. A única preocupação que eu tenho, independentemente dos aspectos administrativos, é a tal revitalização das comunidades cristãs: se elas existem, vamos mantê-las. Se são só puramente administrativas e se podem ser mudadas de maneira a que facilitar a vida das comunidades locais, não.
De tempos a tempos fala-se na possibilidade de se criar uma nova diocese, a Oeste. Havendo cada vez mais pessoas em Lisboa e cada vez menos padres, poderá ser uma solução? 
O Patriarcado onde eu nasci já deu origem a três dioceses: Lisboa, Setúbal e Santarém, a partir de 1975. Hoje em dia as circunstâncias são diferentes. Eu sou de Torres Vedras, em pleno Oeste, e noto que os meus conterrâneos circulam, em grande parte, entre Lisboa e Torres. Portanto, seria uma coisa bastante arbitrária cortar com aquilo que é a vida das pessoas. Lisboa-Torres Vedras faz-se em meia hora pela auto-estrada. Além disso, o Patriarcado, em termos territoriais, não é muito grande.
Mas abarca muita gente.
Mas é uma gente que circula. E que até circula mais entre Lisboa e Setúbal do que propriamente para Oeste. E isso é que com certeza teremos que ver com a diocese de Setúbal: encontrar formas de trabalho comuns que tenham em conta esta realidade das pessoas que vivem entre as duas margens do Tejo.
O que é que pode ser feito com Setúbal, concretamente? 
Trabalhar no sentido de uma cooperação inter-diocesana, como já se faz em muitas partes do mundo: há dioceses que estão próximas e que, além de terem a sua vida própria, trabalham em conjunto. Porque nós temos de estar ao serviço das pessoas. Há uns anos, quando era bispo auxiliar de Lisboa, acontecia-me com frequência receber pessoas que me colocavam problemas. E só ao fim de dez minutos de conversa é que percebia que tinha de as mandar para a diocese de Setúbal. Diziam-me que eram de Lisboa, porque efectivamente se sentiam parte de Lisboa e faziam toda a sua vida em Lisboa, mas depois viviam no Fogueteiro. Só viviam do lado de lá porque encontraram casas mais baratas. Temos de arranjar uma nova forma de organização, porque as realidades de hoje são diferentes das da década de 1970.
Uma das matérias que tem ocupado o conselho presbiterial é a questão da acção social. Há cerca de 300 centros na diocese de Lisboa, com cada vez mais solicitações e muitos deles em situações financeiras complicadas. Os problemas destas instituições têm só a ver com a redução dos apoios por parte do Estado?
Tem a ver com isso, mas também tem a ver com outras questões. Quando muitos desses centros começaram, há muitos anos, arrancaram de forma quase amadora. Sem o gigantismo de hoje. Actualmente, as instituições requerem muitos meios: humanos, materiais, técnicos. É preciso fazer uma readaptação de meios e de pessoas, que vai demorar algum tempo e que será custosa.
Readaptação em que sentido?
Acertar a oferta com a procura, desde logo. É preciso rever os sectores da acção social em que actualmente há menos procura. O sector infantil tem hoje menos procura que há uns anos, enquanto que aumentaram as solicitações ligadas aos idosos - porque a população está mais envelhecida. O que é preciso fazer esse ajuste, essa readaptação. Porque o Estado, por uma questão de subsidiariedade - e bem - se encontrar instituições no terreno que já lá estão, que fazem bem e que até mobilizam boa vontade para garantir o funcionamento, não se vai substituir, vai apoiar, vai estimular essas associações. Sejam as nossas, sejam outras. Desde que façam um bom trabalho.
O Estado social, como o conhecemos, ainda é sustentável?
O Estado social apareceu e desenvolveu-se em sociedades que verificaram um desenvolvimento económico e social. E foi possível, com as contribuições dos cidadãos para o Estado - com aquilo a que nós hoje chamamos a Segurança Social -, apoiar todas as necessidades, do nascer ao morrer.
E agora?
Agora temos que ver se conseguimos manter o mais possível tudo aquilo que ganhámos de bom, com a consciência de que tem de sair das contribuições dos cidadãos. Mas isso são questões para economistas.
Um dia depois de ter sido nomeado pediu aos políticos mais solidariedade, mais clareza e pedagogia. Porque é que enviou esse recado?
Não digo que esses três princípios não existam, mas é preciso que se manifestem. Porque é preciso que haja interacção entre os governos e as pessoas. É necessário que quando uns falam os outros consigam compreender - para que depois possam agir positivamente.
Há um problema de comunicação?
Há um grande problema de comunicação em Portugal, neste momento. E de falta de pedagogia. Eu próprio, às vezes, tenho dificuldade em compreender aquilo que me estão a explicar. É necessário pensarmos que é preciso clareza. Nós compreendemos se as pessoas nos explicarem. Se as coisas são verdadeiras, são correctas e nos são explicadas, a gente entende-as. Mas se nos atiram com números e com palavras - e ainda por cima, hoje em dia, poucas delas em português quando se tratam de coisas internacionais -, a gente não entende e fica ainda mais aflito do que estava antes. É também preciso que haja solidariedade e que nós sintamos que eles, governantes, estão connosco. E não basta que eles queiram estar connosco: é preciso que eles manifestem essa solidariedade a todos os níveis, desde o nível autárquico ao nível do Estado e ao nível internacional - embora isso nos escape mais da mão. E sobretudo clareza e pedagogia. Já dizia isso aos membros de anteriores governos, até antes da crise, quando iam ao Porto falar comigo. E também já disse a estes, direi sempre e procuro dizer a mim próprio também: sejamos claros, sejamos sucintos e manifestemo-nos solidários.
Os membros de governos anteriores iam ao Porto falar consigo?
Iam. Falavam comigo e com outros colegas meus, também. A Igreja Católica, em Lisboa e no Porto, tem uma presença muito forte.
E algum dia confessou algum governante?
Mesmo se tivesse confessado não lhe dizia.
Não lhe estou a perguntar o que lhe disseram na confissão. 
Sacramentalmente nunca confessei. O que não quer dizer que com aqueles com quem tivesse mais familiaridade a conversa não tenha entrado por aspectos mais anímicos.
As últimas semanas têm sido muito atípicas do ponto de vista político?
... (interrompe) eu não acho que sejam atípicas. Acho-as mesmo muito típicas de uma situação que, essa sim, é inédita em Portugal. Eu não me lembro, em quase um milénio de história portuguesa, de um outro período em que estejamos tão dependentes de decisões e de decisores que não estão cá. Acho que o que se tem passado ultimamente, no plano político, é típico de uma situação em que a nossa margem de manobra está reduzida como nunca esteve. E isso exige que se ande à procura não se sabe muito bem do quê.
E exige um entendimento urgente?
Exige, sem dúvida, que nos concertemos mais internamente para que possamos falar com mais força e mais consistência externamente.
Há excesso de partidarite na vida política nacional? Os líderes políticos pensam mais nos interesses dos partidos do que propriamente nos interesses das pessoas? 
Isso pode acontecer e até é uma coisa quase espontânea. Mas acho que a vida partidária, se a entendermos como ela deve ser, é muito importante para a democracia. Porque uma democracia é a conjugação de vontades e de sensibilidades numa sociedade plural, como é a nossa. E se essa conjugação de vontades for canalizada por grandes grupos de opinião, como os partidos, isso permite canalizar melhor o debate. E é mais eficaz do que se toda a gente falar ao mesmo tempo. Por isso, se a vida partidária conseguir ser isto, se conseguir representar as várias correntes sociais, económicas e políticas, é boa e é positiva para o debate democrático.
E a vida partidária tem sido isso?
Não estou no lugar dos nossos líderes e governantes e, portanto, não os posso julgar. Posso é pedir-lhes que façam disto que referi a vida partidária. Que, como disse, é indispensável à democracia.
O governo deve ser penalizado pelos sacrifícios que tem vindo a pedir através de eleições antecipadas?
Julgo que neste momento o fundamental, e deixando penalizações e prémios de lado, é que consigamos levar o acordo que temos internacionalmente a bom porto. Até porque não temos outra possibilidade. E que, nesse sentido, as forças que subscreveram o acordo se entendam positivamente. E depois, olhe... a ver vamos. Porque na política as previsões mudam já nem digo de ano para ano, mas de mês para mês e a uma tal velocidade que... a ver vamos, como dizia o cego.
Brevemente acontecerá a votação final da co-adopção por casais homossexuais. Considera que a lei vai abrir caminho à adopção plena?
Decisões deste género tocam tanto no tecido social que têm de ser aprofundadas e debatidas. A sociedade não pode ser surpreendida por arranques legislativos deste género e que, pelos vistos, surpreenderam até os próprios deputados. Não pode ser assim. Trata-se de coisas muito sérias. Espero que este tempo sirva para aprofundarmos o que está aqui realmente em causa. Para mim, como cristão, e até não só como cristão, é indubitável a importância da autoridade masculina e feminina no que diz respeito à família e à vida social. A dignidade humana está exactamente em reconhecer esta complementaridade e não em anulá-la. Os que pensam como eu e os que pensam de outra forma podem e devem conversar. E isso não é um momento legislativo, é um momento de aprofundamento cultural. No fundo, parece-me que isto tudo é uma precipitação.
Voltando à Igreja. O Santuário de Fátima não apresenta contas publicamente há vários anos, apesar de viver de ofertas e doações. Não lhe parece que seria necessária maior transparência?
Isso tem de perguntar ao bispo de Leiria-Fátima. E ele vai responder-lhe qualquer coisa do género?
? com a Concordata.
Não é só a Concordata. A aprovação do que se passa em Fátima é feita através dos seus peregrinos, que mantêm uma enorme confiança naquilo que lá se faz e lá se gere.
Então a transparência não é importante?
É importante, mas tem de se jogar com a conveniência.

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